Dear future generation, please accept our apologies. we were rolling drunk on petroleum. Kurt Vonnegut
Energia, Trabalho e Revolução Carbónica
Energia é a capacidade de realizar trabalho, e trabalho é um meio de converter recursos naturais em bens e serviços. A história da humanidade é a história da captura de energia extra-somática pelo Homo sapiens, o mesmo é dizer, a história da mobilização de recursos cada vez mais vastos, ao serviço de sociedades cada vez mais complexas. Uma evolução iniciada com a domesticação da pedra e do fogo, prolongada, muitos milénios depois, pela domesticação do vento, expandida com a domesticação de animais, plantas e seres humanos, e culminada pela exploração da energia fóssil. Até ao século XVIII, a espécie humana viveu exclusivamente de energias renováveis e de baixa intensidade: solar, eólica, hidráulica, etc. Por conseguinte, a vida era lenta, magra, comunal, o povoamento era escasso, o costume imperava, e um qualquer copo de água podia matar. A sobrevivência dependia da genética e da sorte. Foi assim durante duzentos mil anos de evolução e cinco mil de civilização. De repente, começou-se a explorar a sério a formidável quantidade de energia sepultada na litosfera – carvão primeiro, depois petróleo e gás natural – e tudo mudou. Com energia barata e abundante à disposição, as coisas começavam finalmente a aquecer para a espécie humana. Era possível acelerar em todos os domínios. E foi o que fizemos, naturalmente. Esta revolução dos combustíveis fósseis permitiu a transição do mercantilismo para o capitalismo industrial e financeiro, alavancou o império anglo-americano (do carvão ao petrodólar) e deu gás ao balão iluminista do progresso e da abundância. Medicina, gasolina, adrenalina. Bar aberto toda a noite. Quando a festa terminou, neste princípio de século, a espécie que se auto-denomina sapiens tinha feito o prodígio de multiplicar por sete o seu peso sobre a Terra (de c. 1000 milhões em 1800 para c. 7000 milhões em 2015), e pusera-se na completa dependência de um bem finito, e cujo preço não pode controlar. Hoje os combustíveis fósseis fornecem 80% da energia que consumimos, e não há nada que os possa substituir.
Crescimento e decrescimento
O sistema capitalista segregou uma teoria económica – o liberalismo – que tem como pressuposto que nunca nos faltará energia barata, recursos abundantes e crédito fácil para a expansão sem fim. O que significa que a teoria não foi concebida para as condições vigentes no planeta Terra, mas para as condições de um qualquer planeta exterior, na Galáxia da Sociologia. E não admira que assim pareça, se a teoria foi burilada por sedentários gentlemen da idade do carvão, para quem os factores de produção se limitavam, como faz notar Gail Tverberg, a “terra, trabalho e capital”, dentro de um “modelo simplificado [que] não levava em consideração os recursos naturais, ou a poluição causada pela extracção e uso desses mesmos recursos, ou o papel da dívida”. 1 E como a fortuna popular duma ideia não depende da sua inteligência mas dos lucros que produz ou justifica, e o wishful thinking das “ciências humanas” é muito mais simpático do que as leis da física, o liberalismo vingou e floresceu de tal maneira que ocupou todo o espaço mental disponível.
Mas o choque com os limites biofísicos do planeta torna cada vez mais urgente a contestação de aspectos tão basilares do actual sistema político e económico como a obsessão pelo lucro, o crescimento e o produtivismo, a fé na tecnologia e no engenho humano, ou a concepção dos ecossistemas como meras fontes de recursos para as populações humanas. Lamentavelmente, esta espécie de gigantismo produtivista e antropocêntrico nunca foi questionado pelas duas ideologias dominantes nos últimos duzentos anos: liberalismo e socialismo. Tendo abraçado o culto do trabalho e da industrialização, o capitalismo liberal e o capitalismo de estado não podiam deixar de abraçar igualmente o grande mito do progresso, que na segunda metade do século XX quase se subsumiu na tóxica fórmula do “sonho americano”: a ilusão de que é possível estender a sete mil milhões de pessoas um estilo de vida faraónico, baseado em colossais dispêndios de energia e de recursos.
Que os pressupostos do liberalismo estavam completamente errados, é algo que só se foi tornando claro a partir da década de 1970, quando o consumo de petróleo per capita atingiu o seu pico global e a chamada economia produtiva começou a dar sinais de não poder alimentar o nível de crescimento exigido pelo sistema financeiro (exigido porque sem crescimento é impossível pagar ou contrair dívidas). E como a espécie humana está mais bem preparada para deixar correr o marfim do que para lidar com problemas mediatos, ao capitalismo só restava a desesperada manobra da fuga para a frente. Fuga esta que consistiu em maquilhar os rendimentos decrescentes com tramóias de magia política e financeira como a terciarização, a globalização, o crédito fácil e a financeirização da economia – outras tantas tentativas de salvar a ideia de crescimento (e exponenciar, claro, as mais-valias da classe dominante) via encurtamento dos custos salariais e energéticos. Com essas jigajogas, e o súbito incremento da exploração de petróleo off-shore, mais uns pozinhos de manipulação estatística ou contabilística, conseguiu-se prolongar artificialmente a bonança e adiar os problemas por mais quatro décadas.
Mas a cada ano que passa vão diminuindo os truques disponíveis. Porque nenhuma desta prestidigitação pode esconder que os combustíveis fósseis são finitos e que, tal como acontece com todos os recursos, os de mais fácil acesso são os primeiros a ser explorados. O que implica que com o passar do tempo seja necessário investir mais dinheiro e mais energia para obter a mesma quantidade de um dado recurso. O mais importante dos combustíveis fósseis é o petróleo, cuja produção global não sobe significativamente desde 2005. E a cada dia que passa há menos petróleo barato de extrair, petróleo daquele que dinamizou os “trinta gloriosos anos” e o Estado-providência, com preços entre dez e trinta dólares o barril. Hoje só resta do caro, ou seja, aquele cuja produção exige um preço que a economia não pode pagar. Tal como explica George Mobus, se “os custos de extracção de combustíveis [fósseis] estão a subir exponencialmente” e “a exploração das areias betuminosas, do óleo e do gás de xisto e do carvão em veios profundos exige muito mais energia do que ocorria com os seus antecedentes históricos […] conforme o tempo passa, há menos energia líquida para fazer trabalho económico”. 2
É este défice energético, agravado pela insustentabilidade da pressão sobre recursos e ecossistemas, o que faz com que o crescimento deixe de ser possível, sobretudo em países com estilos de vida baseado em altos consumos, como é o caso dos da OCDE. Independentemente dos nossos sonhos, o facto é que sem energia barata para produzir, transportar e feirar todos os desejos que o século XX nos habituou a confundir com necessidades, o futuro será muito mais pobre, inevitavelmente, do que o passado recente. E se o crescimento é o oxigénio do capitalismo, não admira que o capitalismo esteja presentemente deitado no chão, a estrebuchar. Podemos ter pena, podemos não ter pena. O que não podemos é salvá-lo. Porque, nas palavras de Miguel Amorós, o capitalismo “ultrapassou o limiar a partir do qual as medidas para o preservar aceleram a sua autodestruição. Já não pode apresentar-se como a única alternativa ao caos; é o caos, e sê-lo-á cada vez mais”. 3
Transição (ou não)
Sendo um subproduto da era do petróleo, e tendo nascido para legitimar aspirações a mais e mais, as teorias políticas dominantes não têm resposta para situações de decrescimento. Então, de que nos servem numa época em que mais é menos e menos é mais? Parece óbvio que o pensamento político do século XXI só pode ter como objecto a construção de alternativas para o pós-capitalismo. Ora, num espaço teórico delimitado pela conformidade com os factos científicos, a distribuição igualitária do decrescimento é o melhor a que podemos, colectivamente, aspirar, já que tudo o mais são fantasias de uma era da abundância em vias de extinção.
E “distribuição igualitária” parece um propósito político talhado para a esquerda. Mas para estar à altura dessa missão, a esquerda precisaria de se reinventar como anti-produtivista e anti-progressista. Teria de compreender a encruzilhada a que chegámos, compreender que somos uma espécie encurralada pela escassez de recursos e energia barata, uma espécie que excedeu em muito a capacidade de carga do seu habitat, e que portanto só tem caminho para baixo. Teria de ser uma esquerda pessimista e franciscana, portanto. LOL.
Em todo o caso, e independentemente dos rótulos ideológicos, é importante ter presente que a política não pode resolver os nossos problemas. Pode, quando muito, minorá-los, distribuir o mal pelas aldeias, gerir de forma controlada o decrescimento, tentar fazer com que a transição para o pós-capitalismo não passe por um colapso catastrófico. Essa transição devia ter sido iniciada na década de 1970. Devíamos ter dado ouvidos a desmancha-prazeres como E. F. Schumacher, André Gorz, René Dumont, William Catton ou Ivan Illich, quando nos advertiam lucidamente, nas palavras deste último, que “mais crescimento conduz obrigatoriamente ao desastre [e] pode ser o fim da civilização política ou até da espécie humana”. Com um optimismo que hoje é difícil partilhar, Illich manifestava a esperança na “oportunidade de uma escolha sem precedentes”. Essa escolha exigia que os “os prisioneiros do progresso” se quisessem evadir do “paraíso industrial” 4. Mas não quiseram, não quisemos, porque o ascetismo raramente é popular, e a maioria, se puder escolher, prefere o consumismo às senhas de racionamento. A diferença, quarenta anos depois, é que já não temos quereres. O progresso morreu, nasceu o regresso. Acabou a viagem, só nos resta voltar para casa, voltar à terra.
O que importa agora é travar a fundo e fazer o possível para amortecer o choque, para nos adaptarmos ao que aí vem. Amortecer o choque só é possível com uma rápida relocalização e reconversão da actividade produtiva, que terá de voltar a centrar-se no sector primário. Gostemos ou não da ideia, no futuro vamos ser todos agricultores pobres, como no século XVIII e nos oitenta séculos anteriores. Quando a agro-indústria deixar de poder devorar as actuais imensidades de petróleo e gás natural (necessitando de oito calorias de energia fóssil para produzir uma caloria alimentar), a produção alimentar voltará forçosamente a depender de energias renováveis e trabalho muscular. E para que essa produção não venha a cair de forma catastrófica, será necessário começar desde ontem a implementar sistemas agrícolas sustentáveis e resilientes, o mesmo é dizer, permaculturais. Em poucas palavras, se não salvarmos as condições de habitabilidade para todas as espécies, não perderemos apenas empregos e rendimentos, perderemos tudo. Então, as alternativas são: travagem ou colisão, cooperação ou morte. Ou nos safamos “todos”, ou não se safa “ninguém”. Económica e politicamente, a nossa única esperança é usar os recursos energéticos que nos restam da forma mais democrática possível, e aplicá-los na criação de sistemas auto-sustentáveis, de acordo com o modelo proposto por algumas comunidades intencionais, eco-aldeias ou o movimento Transition Towns. Entre o realismo de uma frugalidade comunitarista adaptada aos limites ecológicos, e o sonho de um expansionismo autodestrutivo e portanto sem futuro, a escolha parece evidente. Proverbialmente, entre dedos e anéis, todos sabemos o que vale a pena conservar. Se levarmos em conta, porém, o grau de consciência e popularidade que estas noções encontram na cabeça dos sete mil milhões, e a rigidez dos interesses estabelecidos, e a urgência da mudança, a esperança numa transição para uma economia sustentável é quase nula. Sejamos realistas, o mais provável é que continuemos a salivar diante do sonho americano, porque afinal é para isso que somos programados genética e culturalmente, que continuemos a tentar acelerar para não cair, e as próximas gerações que se amanhem com as sobras e os cacos. Uma coisa pelo menos é certa, não vai faltar trabalho no futuro, e dentre as áreas de actividade mais apetecíveis estarão a agricultura, o bricolage e a remoção de entulho. _______________________________________________________
Notas
1. Gail Tverberg, “Descontinuity Ahead”, in Our Finite World 2. George Mobus, “Peak Neoclassical Economics?”, in Question Everything 3. Ivan Illich, A Convivencialidade, Publicações Europa-América, p. 132 4. Miguel Amorós, “Dialectica del Cénit y el Ocaso”, in Decrecimiento
Alguma Bibliografia
Em livro: James Howard Kunstler, O Fim do Petróleo, (2005, ed. port. 2006), Thomas Homer-Dixon, The Upside of Down (2006), Derrick Jensen, Endgame (2006), Michael C. Ruppert, Confronting Collapse (2009), Chris Martenson, The Crash Course, (2010), Craig Dilworth, Too Smart for Our Own Good (2010), Toby Hemenway, Gaias’s Garden, (2009), Martin Crawford, Creating a Forest Garden (2010), Richard Heinberg, The End of Growth (2011), Ramón Fernandez Duran, La Quiebra del Capitalismo Global 2000-2030 (2011), Dmitri Orlov, The Five Stages of Collapse (2013).
Em blogue: Jay Hanson (Die-Off), David Holmgren (Future Scenarios), António Turiel (The Oil Crash), Pedro Prieto (Crisis Energética), Gail Tverberg (Our Finite World), George Mobus (Question Everything), Eric Toensmeier (Perennial Solutions), Dmitri Orlov (Club Orlov), Walter Haugen (Food with Full Attention).
Publicado, com pequenas alterações, em Intervalo, nº 7
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