A Nau Portugal

Os ratos do porão têm vindo a abandonar gradualmente o navio, e agora até na ponte de comando há defecções. Largos sectores da tripulação preparam o motim e a eleição de novo capitão. Emoção garantida. Distracção igualmente. Salvação é que não. Porque as bombas estão quebradas, os botes estão furados e os rombos no casco não se tapam com promessas. Mas mentir é possível, navegar não é possível. E o último a chegar aos peixes é um grandessíssimo economista.

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Ernesto Sampaio

“Tudo iria explodir, mas só dali a alguns anos, em plena histeria das cidades, quando a linguagem deixasse de ser emoção e fosse apenas lixo, balbuceios de morte, estereótipo abominável, código comum necrófilo, suprema retórica pretensiosa que não é senão falhanço, derrota, detrito à medida de uma gente falante composta de refugos em pé, abortos equilibristas que acabam por saber quem são e enlouquecer, o que os leva a aglutinarem-se, a serem cada vez mais atrozes todos juntos.”

[…]

 

“Estas invectivas começam a tornar-se uma espécie de ronrom, eu sei, mas quando me ponho à escrita é quase só o que me ocorre. Bem vêem: a gente da vida airada asseptizou o mundo, tornou obrigatórios os seus conceitos de higiene e felicidade, empurrou a liberdade para os sótão e as caves, cada vez mais do lado da desgraça e do sangue – e não quero este discurso inquinado pela complacência verbal dos plumitivos “améns”, nem confundido com a sua completa demissão moral.”

 

Ernesto Sampaio, As Coisas Naturais, Averno, 2013.

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