CIFRÓNIO
1.
Alguma razão tens, Cifrónio, quando dizes
que a esquerda fede das ideias e dos pés
(há de tudo em todo o lado). Mas a direita, ai,
que dizer da direita, que nem ideias tem,
apenas interesses, sapatos e cinismo?
2.
Não fica bem, Cifrónio, a um esteta
babar interjeições de mediático
estupor. Dá vontade de rir essa pose
que apresentas, de anjinho sulfuroso,
esse teu zelo de converso contra
o pobre idealismo dos relapsos:
silogismos, investidas, impropérios…
A sério, preocupas-me, Cifrónio.
Tem juízo. Não abanes a cabeça tão
depressa. Ainda ganhas uma hérnia
no cachaço.E se tal acontecesse –
que desgraça, ficarias impedido
de exercer o melhor da tua arte:
essa vénia graciosa com que lambes,
aulicano, os fundilhos do poder.
3.
Subiram-te à cabeça, Cifrónio,
os discursos do Príncipe. O teu rabo
já nem sabe pra que lado há de girar:
vens até à porta ladroar aos desolados,
voltas para dentro, rebolas no tapete,
recebes outro osso – há lá vida mais feliz!
4.
Em tudo o que defendes, Cifrónio,
ou afirmas defender, lê-se à transparência
um número de série: o da conta bancária.
O que dizes ou não dizes, assim o entendemos.
A esquerda pode ser, como dizes,
rafeira e piolhosa (há de tudo, já te disse),
mas não guarda portões, nem gosta de ir de trela
ao sarau da generala. Tu, Cifrónio, tens
o gosto e o proveito de servir as ninharias
filosófico-políticas do dia com grinaldas
de razão publicitária. Só te falta a honradez
de chamar-lhe dinheiro, em vez de liberdade
(ou lá o que lhe chamas).
José Miguel Silva, (inédito, 2003, corrigido em 29/11/2012)