Henry Green, Amores (Tradução de JMS)
Era uma vez um velho mordomo chamado Eldon, que estava deitado no seu leito de morte, assistido pela chefe das criadas, a Menina Agatha Burch. De quando em quando, outros domésticos apareciam no quarto para manifestar, separadamente ou em coro, os sentimentos apropriados à circunstância, após o que regressavam aos seus afazeres.
O moribundo repetia continuamente um nome, “Ellen”.
As janelas ogivais do quarto do Sr. Eldon não tinham estores nem cortinas. Pois isto passava-se na Irlanda, onde não havia imposição de blackout.
Soou um riso masculino. A Menina Burch estremeceu, a voz voltou a ouvir-se. Charley Raunce, chefe dos criados, estava a falar no exterior com o louro Bert, ajudante de copa. Agatha reconheceu a voz, mas não conseguiu perceber o que se dizia.
«… continuando», dizia Raunce, «deves sempre lavar os dentes antes de ir ter com uma rapariga. É uma questão de higiene pessoal. É que eu interesso-me por ti, rapaz, e devias agradecer-me. Olha o que eu te digo, vai com calma, se não queres dar cabo da saúde.»
O rapaz parecia adoentado.
«O que te fazia bem era um copito de whisky», prosseguiu Raunce, mas o rapaz não se atrevia.
«Ali dentro não», respondeu o moço, assustado. «Credo!»
«E porque não? Tu não sabes onde ele tem a garrafa? Claro que sabes.»
«Nem pensar, beber no quarto dele…»
«Ora, não te deixes perturbar com ninharias», disse Raunce. Era um homem pálido, e mais pálido estava nesse momento. «O velhote está com a sua Ellen, não vai dar fé.»
«E a Menina Agatha?»
«É esse o teu problema? Porque não disseste logo? Isso é diferente. Assim já te compreendo. Deixa que eu trato dela.»
Raunce hesitou um momento, depois entrou no quarto. O rapaz ficou à escuta, como se esperasse ouvir um grito. Como a porta ficara entreaberta, pôde ouvir o modo como Raunce expunha o caso.
«Hoje é a minha tarde livre, para o caso de eles se lembrarem de me chamar», disse ele a Agatha. «Se quiser, eu fico a tomar conta dele um bocado enquanto você vai dar uma volta para apanhar ar.»
«Se é assim», respondeu ela, «não me importava.»
«Então, força, Menina Burch. Vá dar um passeio, para desanuviar.»
«Não vou para longe, só uma volta pelas traseiras. Mas se ele piorar, chame-me, está bem?»
Charley prometeu-lho e ela saiu. Bert continuava imóvel, com as facas molhadas na mão direita. A porta estava de novo aberta para trás. Depois, ainda quase ao alcance do ouvido da Menina Burch, ouviu-se o barulho de uma gaveta a ser fechada. Raunce reapareceu, trazendo na mão uma garrafa de vidro talhado cheia de whisky. A porta ficou aberta.
«Vamos a isto. Ouve», disse ele para Bert, «na tua idade, o importante é comer e beber. Eu sei que está um velho a morrer, mas isto para mim vale mais que pão e vinho. Essa é que é essa. Vamos lá para trás da porta.»
No tempo do Sr. Eldon aquilo tinha sido uma espécie de ritual. Entre a parede e a porta da copa formava-se um recanto. Era aí que se bebia o whisky do Sr. Tennant. «Ellen», voltou a ouvir-se, «Ellen».
Aproximou-se um frufru de saias e Raunce meteu a cabeça de fora enquanto Bert, mais escondido por ser mais baixo, só pôde olhar para o lado contrário, ao longo de um corredor traseiro, com os olhos ao nível de uma das dobradiças da porta, e não viu ninguém. Mas Charley avistou Edith, uma das duas criadas de quarto.
A rapariga parou diante da porta aberta do quarto do mordomo. Só quando Raunce disse «Olá» é que ela se virou. Reparou então que Edith trazia uma pena de pavão na bonita cabeça, espetada no cabelo castanho-escuro, ondulado. «Que se passa?», perguntou ele, ao mesmo tempo que lhe mostrava a garrafa com um ar de “olha o que eu encontrei”.
A criada trazia nas mãos uma luva de couro, segura pelo punho. Raunce viu que estava cheia até à borda de ovos brancos e intactos.
«Que susto me pregou», disse ela, com um ar nada assustado.
«Olha o que tenho aqui para nós», respondeu ele, relanceando um olhar à garrafa que tinha na mão. Depois fixou-se na pluma, que era talvez o que a rapariga esperava.
«É melhor tirares isso antes que te vejam», prosseguiu ele. «Que trazes aí? Ovos? Para quê?», perguntou. Bert espreitou por debaixo da garrafa e exibiu o sorriso adolescente que sempre reservava para as raparigas. Sem aviso nem qualquer mudança de expressão, Edith começou a corar. Essa lenta maré congelou os seus olhos negros, dando-lhes um brilho facetado. «Não lhes vai contar», pediu ela. Charley ia para responder “depende” quando soou uma campainha. O painel indicador vibrou. «Pronto, está bem», disse Raunce, saindo para ver de que quarto chamavam. Bert seguiu-o timidamente.