Nunca tinha lido sequer uma linha de Doris Lessing, de quem sabia apenas que sofrera recentemente um prémio Nobel, coitada. Mas quem é viciado em biografias (mesmo auto-) não recua perante nada. Sem ser um deslumbramento que me ponha a encomendar à tola os restantes livros dela, Walking in the Shade, 2º volume da sua autobiografia, é uma obra de leitura agradável e um relato aparentemente honesto da sua vida entre os 30 e os 40 anos, em que passa de escritora anónima a pequena (ainda) celebridade e de comunista a trânsfuga do comunismo. Pelo meio, Lessing descreve o meio social e cultural em que se movia na Londres da década de 50, assim como a sua peculiar “paisagem mental”, as suas actividades como activista política e o progressivo desencanto com a URSS (e algumas das melhores páginas do livro são aquelas em que narra a sua visita a esse “paraíso” infernal, em 1952), para além dos seus combates literários e de algumas circunspectas incursões no território da sua vida sentimental.
Como quase sempre ocorre neste tipo de narrações biográficas, o mais interessante são os retratos de gente que viu e conheceu, gente célebre, semi-célebre, ex-célebre ou anónima: o jovem e lustroso pastor-alemão Henry Kissinger, J. Osborne, Bertrand Russell, etc., ou a família, os amigos e vizinhos (entre os quais, a Mulher Mais Azarada do Mundo), os editores, os compagnons de route, etc.
No conjunto, a obra dá-nos a imagem de Lessing como uma mulher moralmente equilibrada, intelectualmente honesta e independente. Ficamos, claro, sem saber se também tinha defeitos, se batia no filho ou nos gatos, se deitava sal no jardim do vizinho, se pagava subornos à polícia literária. Mas já se sabe que a honestidade tem limites e não foi para exercícios de auto-crucificação que se inventou o género autobiográfico (mesmo Agostinho, que era santo, não confessa mais do que roubas de pêras, más companhias e pecadilhos do género). E se o Índice de Humor por Página fica, neste livro, muito abaixo do que seria de esperar de um autor inglês, por outro lado não faltam observações judiciosas e de muito proveito. Exemplos:
“We all of us have limited amounts of energy, and I am sure the people who are sucessfull have learned, either by instinct ou consciously, to use their energies well instead of spilling them about”
“The safeguard against tyranny, now, as it always has been, is to sharpen individuality, to strenghten individual responsability, and not to delegate it”
“What the good of knowing something if that doesn’t affect how you behave?”
A única passagem do livro que se lê (eu pelo menos leio) num trolaró de tábem-tábem é aquela em que Lessing nos fala (muito de raspão, felizmente) dos esplendores da vida mística contra o grisalho materialismo filosófico, depois de ter trocado a ilusão comunista pela ilusão sufista e pelo ioga. Surpreende que uma mulher aparentemente inteligente como Lessing não perceba como é ridiculamente contraditório para um escritor (por definição, um monstro de volição a de auto-afirmação) vir louvar o apagamento do eu à maneira budista. Toda a gente sabe que individualismo e budismo se excluem mutuamente. Um sufista, um budista, um taoista, etc., coerentes não escrevem romances, não projectam a mentira de um nome no firmamento mediático, não recolhem prémios literários, não assinam livros nem contratos de publicação. Apagam-se na sombra de um mosteiro ou eremitério e ficam à espera, de boca calada, que os atinja o raio da iluminação. Todas essas filosofias orientais são excelentes e muito poéticas, sem dúvida, mas para a terceira idade, quando ao lobo já os dentes caem e o pêlo perde a cor. Até posso conceder que renunciar é bonito, mas desde que não se limite a uma pose de sossega-espírito. O mais corrente e sensato, porém, é renunciar-se, sim, mas quando já não se pode, como aqueles tubarões da finança nipónica que aos sessenta abandonam os negócios, rapam a cabeça e vão contar flores de ameixoeira para o monte Fuji.
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